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LUGARES

SOBRE A PINTURA DE RUI TAVARES

 

A pintura de Rui Tavares é sobretudo a concepção da cor como um espaço. O lugar é um tópico constante do seu trabalho, evocado pelos avanços e recuos das tonalidades, que são como grandezas medindo forças. Assistimos a um desassossego cromático, não porque se perca a harmonia da paleta, mas porque se distribuem as tonalidades igual a bichos colocados diante uns dos outros. Quero dizer: corpos. As cores são corpos de verdade, forças efectivamente em confronto, alcançando o equilíbrio final mas invariavelmente em estado de tensão. Acabam por aludir a texturas, temperaturas, vazios ou ocupados, antagonizando-se, definindo identidades. São como lugares que conquistam o tamanho e a identidade por batalha uns com os outros, sustentam-se uns nos outros, erguidos como matérias complementares mas de ego próprio. Lugares assurriados, acossados, apenas por negociação deixados estáticos.

As cores de Rui Tavares são uma brilhante negociação. Discutem superiormente umas com as outras, como se as casas se construíssem por elas mesmas, conversando acerca do que deve ser maior ou menor. Discutem a reacção à luz. De que maneira cada cómodo, mais limpo ou obscuro, mais gracioso ou esconso, deve reagir à luz. Os espaços de Rui Tavares são concêntricos. Na edição que faz não abdica de incluir necessariamente a intersecção, esse ponto de convergência que parecer ter o poder de articular tudo o resto, como se fosse o elemento catalisador capaz de sugerir o diálogo entre as partes. Esse elemento, no que à luz diz respeito, é uma ignição. Normalmente, uma encruzilhada de menor claridade de onde a claridade possível parece conseguir alimento. Neste aspecto, e porque de lugares se trata, há sempre uma espécie de sentido expansivo das cores, como um fiat lux que operasse em cada quadro, tão educado para um certo plácido quanto impossível de se conter. Gosto muito da brancura espessa das telas de Rui Tavares. São de um fosco denso, carregado, como a recusar toda a pureza, apenas apelando à ideia de criação genuína, orgânica. Gosto da componente orgânica de todos os seus trabalhos. Como na criação do mundo, os lugares acusam terra e impressões aquosas. Podemos falar de casas que se constroem por si mesmas ou de imensidões de campos encontrados por linhas de rios secos, pequenos fantasmas de água.

Sobrevoamos também a pintura de Rui Tavares como quem considera campos lavrados. Não adquirimos a natureza dos pássaros, a pintura é que oferece ao observador o impossível. Todas as conclusões são válidas no território transgressor da arte. A realidade é uma descodificação, uma interpretação profundamente pessoal. Podemos achar que vemos madeiras. Tapumes remendados, coisas de sobrepor como se fosse importante ocultar o lado de lá. Há uma engenharia nas formas, algo que, definido por um certo aleatório, me impele para a questão da utilidade. O campo lavrado ou o tapume, em qualquer dos casos, vendo o que não se explica por completo, obrigam-nos ao dilema da utilidade, coisa que ironiza grandemente com a natureza da arte abstrata.

A observação de uma tela de Rui Tavares passa necessariamente pela percepção da estranha contenção de que é capaz. Quando tudo é gigante e expansivo, é verdade que também nos sugere uma disciplina de rigor e de rarefacção. O pintor opera por uma manifesta vontade de sublime, alcançada no certo sujo das suas matérias, um sublime que se faz, afinal, da massa viva das coisas. Como se fosse tudo de natureza vulcânica mas a lava, de facto por educação, fosse já um manto plácido, apaixonado pela superfície do mundo e não furioso. Um acontecimento vulcânico que quisesse depurar, ao invés de destruir a longa maturação das coisas.

Há um modo de dizer tudo isto em poucas palavras: a pintura de Rui Tavares é uma sapiência profunda que nos impressiona. Os seus quadros são meditações valiosíssimas, deslumbrantes, acerca das matérias e seus confrontos.

 

Valter Hugo Mãe

 

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