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Objecto que está entre o estatuto de pensamento e de corpo, o desenho representa hoje um campo operacional expandido. A persistência desta prática disciplinar entende-se na regra de singularidade que lhe é própria. Forma radical da expressão do humano.
Modo de formar privilegiado na história de um percurso expressivo, os desenhos de Rui Tavares questionam o olhar e o Desenho, mostram-nos a sua oficina. Papel, grafite, esfuminho, borracha; na mais estrita referência disciplinar. Materiais e procedimentos onde permanece fecundo o legado da tradição. Acto de desenhar que se estabelece como origem. Numa sequência articulada de intencionalidades inscrevem-se as forças nas formas.
Riscar, marcar, esfregar, apagar. Cumplicidades que o olhar estabelece atento ao agenciado comportamento dos materiais. O mecanismo de génese permanece no desenho e inclui a reflexão sobre a criação como processo. O ofício transfigura-o. Num tacteante e persistente rigor, contido, constrói-se meticulosamente o tecido figural. Aqui se desautorizam aproximações fáceis. Dura regra de próprio em acentuada exclusividade. A austera agudeza do registo reorganiza a percepção que se problematiza.
Itinerário de incertezas formadoras, as estratégias que definem o desenho e as técnicas que o determinam, têm na criação do sentido o seu lado obscuro. Poetiza-se aqui a vida instável e inapreensível da consciência submetida ao assédio das sensações. Desacreditado nas iluminações totalizantes, acentua-se o indivíduo na sua fractalidade e o Outro, incorporado no próprio, emerge como horizonte possível. Babelismo da experiência contemporânea.
A vontade aqui se afirma, na sua natureza imaginante, questiona a identidade, configurando-a como solitária experiência do limite. A relação especular estrutura o sujeito que na mediação do discurso ultrapassa a ordem narcísica. No contexto que a memória faculta, estratos fantasmáticos emergem fragmentariamente. Inominável desejo em deslocação simbólica. Os títulos, parte integrante de cada desenho, relevam da mesma poética, desdobrando a leitura em inquietante lirismo. Assim, na sua autonomia, a imagem aparece-nos como um constructo.
Enfatiza-se a séria temática como processo e o maior envolvimento que possibilita; também a persistência obsessiva na reconstrução do motivo. A força da repetição é usada como recurso expressivo e o modo cumulativo como combinatória e figura de estilo. Nas metamorfoses sucessivas do tema, todo um trabalho contínuo de reescrita.
A morfologia do esquema da composição é dispositivo essencial, como ordem estável imposta ao caos fragmentado da experiência. Cálculo prévio, acordo classicizante, na frontalidade de um espaço que a si próprio se representa. Ansiosa genealogia em melancólica tardividade. O entendimento topográfico do espaço cénico, ancora forças em luta. Composição a ordenar o que se isola e articula. É a economia do ritual planificado.
Dentro de molduras interiores, desenhos desdobram-se noutros desenhos. Subversões. A escala determina-lhes o intimismo e o tempo de recepção que exigem.
A sintaxe das linhas assume a prioridade na temática simbólica. As variações do traço individualizam o gesto na autonomia do seu valor expressivo. Minuciosas figurações intransitivas, de auto irónico humor, dançam numa cursividade configuradora, que é subjectividade portadora de sentido. Anatomia de territórios outros. Subordinados ao traçado estruturante, as significações que as ligam, instauram uma realidade visual ambígua, rica em férteis equívocos que activam o imaginário.
A organização da escala de matizes tonais aparece complexa, subtil, em variações lumínicas que reforçam o esquema compositivo. Outras inquirições sobre o espaço que a luz qualifica. Em contrastes de sugestiva leitura, o uso emocional dos valores obriga a íntima recepção, a um respirar conforme. O seu desempenho na formulação das tensões anímicas justifica-os na concordância entre as articulações formais e semânticas que possibilitam. Ocultação e desvelamento.
A função da textura que qualifica a aparência da superfície num uso substantivo, reconhece a obra como facto gráfico. O grão do suporte regista o gesto nas várias tensões do traço. Sedimentação da grafite que o esfuminho afaga. No rasto do olhar, os valores tácteis reconciliam-nos com o corpo.
A pluralidade da consciência não permite reduzir o mundo a uma representação. Também o olhar tem uma história. O que está em causa é a relação com a imagem como objecto, com a natureza da sua presença. Jogo sem fim que nos mantém interrogantes.
 
Luís Canelas de Castro

 

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